sábado, 13 de março de 2010

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Era uma vez uma história cansada de o ser, na verdade a história andava de boca em boca, aparecia em livros, mas não passava de meras palavras aglutinadas, as quais derivavam de letras aglutinadas, tinta aglutinada, moléculas aglutinadas… A história, um dia, cansada de ser história, replicou ao seu escritor de uma forma doce e terna, “Quero deixar de ser história, torna-me realidade, por favor…”


O escritor, que sabia mais de histórias do que a sua história, disse: “Não és apenas uma história imaginada, tu és real, sempre foste, mesmo antes de existires.”. A pequena história disse “Não creio, não creio…”. “Então vamos fazer uma coisa” – disse o escritor – “apanhas aquele barco ali ancorado e vais conhecer o mundo. Decerto, encontrarás muitas vidas que são como tu, talvez menos ponta de sonho, menos ponta de cor, mais pedaço de desespero, de dor… mas no fundo a tua essência…”


E assim foi. Numa manhã de Inverno a história vestiu-se a rigor, impermeável e guarda-chuva, não fossem as gotas apagarem as letras aglutinadas que formavam as palavras aglutinadas que eram no fundo o seu ser e partiu à descoberta das realidades que ela espelhava sem que o soubesse.


Ao passar a plataforma que dava para terra no primeiro cais, onde desembarcou reparou numa velha vestida de um negro tão negro que chamava a atenção por entre as mil e uma cores de todos os outros. O baque no peito de quem encontra alguém conhecido onde não o era capaz de imaginar. De facto, conhecia a velha desde sempre. Dos dias passados ao lado do porto onde agora deambula pela rua. Das semanas deitada na areia à espera. Dos pensamentos que a invadiam sempre que chegava um barco e da desilusão, sempre a mesma, de ver, um a um, os homens ansiosos por chegar a terra a desembarcar. Nunca o seu, jamais o seu haveria de voltar a pisar chão firme, pensava. E não pisou, pelo menos que ela o visse.


Sem ter noção disso sabia tudo sobre a velha. Sabia que no dia em que o negro desbotasse para castanho havia de chegar à cidade um homem ansioso. Sabia do reencontro. Começou a perceber-se. Julgou ser uma coincidência ao embarcar novamente. As coisas reais não podem ser como as coisas das histórias. Lembrou-se de um dia ter falado com uma história sua amiga que descrevia um homem subitamente transformado em barata. Pois claro que as histórias não são como a realidade, concluiu. Viu as amarras a recolher e fixou-se na linha do horizonte. No próximo porto é que podia saber se tinha razão ou não. Não se esquecia que estava farta de ser história. Realidade, ouviu-se num suspiro. Adormeceu.

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